quinta-feira, 28 de fevereiro de 2008

Áudiodescrição e Audiodescritores: Quem é Quem?

Vivendo sem Visibilidade....

Com certo espanto, li as palavras de Claudete Oliveira, em reportagem sobre audiodescrição de 05/03/2007, para a revista Sentidos, em decorrência das sessões especiais da peça teatral Andaime, destinadas ao público deficiente visual. O susto veio quando a jornalista afirmou: "É que a Vivo - operadora de telefonia móvel - criou os audiodescritores." Para mim, professora universitária de uma instituição federal, que tenta investigar um modelo de audiodescrição no Brasil desde 2004, isso soou até um pouco ofensivo.

Outra generalização pouco fundamentada a respeito das sessões especiais da peça foi a feita pela jornalista Márcia Abos, para a Globo online (25/03/2007), descrevendo "o uso de experiências sensoriais para deficientes visuais" como "inédito na América Latina". Com um pouco de pesquisa na internet, chega-se à página da União Nacional de Cegos do Uruguai, que conta outras experiências sensoriais levadas a cabo em vários países, não somente latino-americanos, desde 1999.


Histórico do Uso da Audiodescrição

Só para esclarecer, a primeira audiodescrição como meio formal de divulgação de um espetáculo audiovisual ao público deficiente visual aconteceu em 1981, no Arena Stage Theatre, em Washington DC. No final dos anos 80, uns 50 estabelecimentos dos Estados Unidos produziam espetáculos audiodescritos. Na televisão, a primeira audiodescrição aconteceu na japonesa NTV em 1983, e em algumas emissoras da rede aberta de televisão na Catalunha, no final dos anos 80. Em 1994, a audiodescrição chegou à televisão britânica, e hoje, os principais países que investem na audiodescrição na televisão, no cinema e teatro são os Estados Unidos, o Canadá, a Argentina, França, Alemanha, Bélgica, Espanha, Inglaterra e Austrália.

Após pesquisar a legenda fechada para os surdos entre os anos 2000 e 2002, em 2004 tive o primeiro contato com a audiodescrição, em oficina de congresso sobre tradução audiovisual em Berlim, seguido de outra oficina em Barcelona em 2005, ministrada por um especialista britânico. Em outubro de 2004 fundei o grupo de pesquisa TRAM (Tradução e Mídia), registrado na UFBA e CNPq, onde investigamos, além de outros temas, a audiodescrição.


Audiodescrição e Narração ao Vivo

Aliás, outra explicação, o que se faz na peça Andaime não é audiodescrição, mas narração ao vivo. A audiodescrição acontece sempre com áudio pré-gravado, onde o timing do programa já está definido, o que não é o caso de uma peça de teatro, mas de um filme.

Uma ramificação do grupo de pesquisa da UFBA - alunas pesquisadoras voluntárias e especialistas em lazer e mobilidade das pessoas cegas - foi treinada por mim em audiodescrição de filmes para então desenvolver, desde 2005, pesquisas de recepção. Ou seja, audiodescrevemos e apresentamos filmes ou seqüências deles a grupos de cegos em Salvador (Associação Baiana de Cegos, Centro de Apoio Pedagógico ao Deficiente Visual e Instituto de Cegos da Bahia) e em São Paulo (Laramara e Dorina Nowill) com o intuito de buscar um modelo de audiodescrição que satisfaça os espectadores deficientes visuais. O início do processo está documentado em publicação da Ciência e Cultura, revista da SBPC ( http://cienciaecultura.bvs.br), volume 58, no.1).

Qualidade, Tempo, Custos e Resultados

Sem qualquer patrocínio ou infra-estrutura de empresa privada, enfrentamos obstáculos financeiros para ver a pesquisa andar. Sem financiamento, a pesquisa demora mais, isso é ponto pacífico. Contudo, a demora também resulta do fato da pesquisa acadêmica primar pela qualidade, pela busca de resultados eficientes. Ninguém faz pesquisa acadêmica porque dá dinheiro, mas pelo compromisso de contribuir com a sociedade. O principal obstáculo da pesquisa do grupo, por exemplo, é o gasto com a gravação da audiodescrição. Desde o começo, tem saído do bolso das pesquisadoras o financiamento de gravação e mixagem (por exemplo, só o custo de gravação da audiodescrição de um curta de 8 min. em estúdio amador custou quinhentos reais). E tem o transporte, para ir e vir de Salvador quando há alguma pesquisa de campo a fazer em outro estado. Não há bolso de pesquisador que agüente. O que queremos hoje é equipar-nos para nos tornar independentes dos estúdios, ou até fazer parcerias com eles.

Os resultados das pesquisas de recepção do grupo (uma em São Paulo e duas em Salvador) já foram apresentados em Barcelona (junho de 2005), em Copenhague (maio de 2006), e em Salvador (dezembro de 2006, em congresso da UFBa), e estão na fila de publicação faz algum tempo em editoras do país1. Timidamente, o trabalho tem conquistado o reconhecimento internacional e algum reconhecimento regional, como o proporcionado por uma entrevista na TV Educativa da Bahia, em julho de 2006. O reconhecimento internacional veio não só dos congressos, mas do fato de eu ter cursado doutorado na Bélgica (1995-2000) e agora, estar fazendo um pós-doutorado em tradução audiovisual na Universidade Autônoma de Barcelona até o final de agosto de 2007, o que facilita muito o contato e intercâmbio de idéias. Isto tudo com o apoio da Capes, que sempre financiou meus estudos. O problema é que, após tanto investimento em conhecimento no exterior, é difícil aplicá-lo na volta ao Brasil.

Por exemplo, o Pós-Doc em tradução audiovisual enfoca a questão da acessibilidade. Entretanto, como posso desenvolvê-la, e até mesmo ensiná-la, sem recursos disponíveis para investir em equipamentos que a área exige, por exemplo, uma ilha de edição para a mixagem da audiodescrição? Por isso, a pesquisa é feita de modo quase artesanal, e muito lentamente. Aí, chega primeiro quem tem dinheiro, como a Instituição Vivo, que equipou seu teatro com fones sem fio, os mesmos que se usam em interpretação simultânea. Que bom se esse teatro fosse disponibilizado para nós, pesquisadores!


AInvisibilidade e o Não Reconhecimento

Como eu, outras pessoas engajadas com a causa da acessibilidade audiovisual estão tomando iniciativas. É o caso da produtora Cristiane Oliveira, do Clube Silêncio de Porto Alegre, que teve a feliz idéia de promover filmes de curta-metragem com audiodescrição, a partir de um roteiro seu, cuja protagonista é cega. Os filmes foram apresentados no Cine Santander de Porto Alegre e incluídos no Festival de Curtas de São Paulo, promovido pelo Museu da Imagem e do Som em agosto de 2006. Este ano, o festival se repete, e se tudo der certo, a sessão de audiodescrição também, com uma possível parceria, onde uniremos técnica e conhecimento. O grande valor dessa iniciativa, para mim, está no fato de que a produtora foi buscar na pesquisa acadêmica um maior conhecimento para aprimorar seu trabalho. É desse tipo de iniciativas que precisamos.

A mais recente iniciativa de promover a acessibilidade audiovisual foi a da Profa. Dra. Lívia Maria Villela de Mello Motta que, através de sua experiência na capacitação de pessoas cegas e de sua participação voluntária no Grupo Terra de Inclusão Social, acabou escrevendo o primeiro roteiro de narração para teatro no país, o da peça Andaime. E quase ninguém sabe disso também. Infelizmente, nenhuma de nós tem poder para promover o estardalhaço da mídia nacional. O comentário do entrevistado do Jornal Nacional (março 2007) Leandro Dupré, cidadão cego, após assistir à peça, de que seria bom que fizessem o mesmo com filmes, isto é, os audiodescrevessem, atesta mais uma vez a invisibilidade em que o pesquisador vive, não porque quer. Assim, todos os méritos ficam para a empresa promotora. Sim, a Vivo tem méritos, como o Programa Vivo Voluntário, que promove a capacitação de voluntários da empresa através de cursos. A narração da peça teatral Andaime, em cartaz no Teatro Vivo de São Paulo, foi desempenhada por alguns desses voluntários, orientados pelo curso ministrado pela Profa. Lívia.

Eu mesma fui conferir a iniciativa na estréia da peça ao público, no final de março passado, por ocasião de viagem ao Brasil. Contudo, para meu desapontamento, em nenhum momento, e diga-se de passagem, em nenhum lugar do site da Vivo ouvimos ou lemos algum crédito à referida professora, que ministrou o curso e escreveu o roteiro da narração da peça. É triste ver tanta dedicação sem reconhecimento. Então, nós, pesquisadores dedicados, viramos uma instituição que fez isso, fez aquilo, e que no final "criou os audiodescritores". Justiça seja feita, o único agradecimento à professora de que tenho conhecimento foi de autoria de Paulo Romeu, conhecido ativista da causa da acessibilidade, em texto disponível no site da "Bengala Legal". E é só.

Ora, mesmo que freqüentem um curso, os audiodescritores não se "criam" tão rapidamente, é preciso muita prática. E audiodescritor é quem escreve o roteiro, principalmente. Aqui na Europa, são cursos e cursos, discussões e discussões. Precisa-se estudar os padrões locais, as preferências nacionais, as questões culturais, não é tão simples assim fazer audiodescrição. No final, a iniciativa fica sendo uma novidade da empresa promotora, e alguns dos cidadãos cegos que ali estavam, e davam entrevistas à televisão, não tinham outro nome a mencionar e agradecer. É claro, foi a Vivo que pagou o curso ministrado pela professora aos voluntários, mas além de justo, o que representa esse valor para a empresa que se define como "a maior prestadora de serviços de telecomunicações móveis do Hemisfério Sul"?

A Vivo é uma empresa privada controlada pelos Grupos Portugal Telecom e Telefónica da Espanha. Seu programa de responsabilidade social é, sem dúvida, louvável. Mas, pensando bem, não seria mais uma obrigação do que um mérito o fato de que toda empresa que lucrasse no país, nacional ou estrangeira, contribuísse com algum setor carente da sociedade? Será que estamos tão mal-acostumados, no pior sentido da expressão? Percebi que o público deficiente visual que ali estava na sessão de teatro elogiou muito a iniciativa "da Vivo." Claro (oops!), acostumados a nunca ver seus direitos de acessibilidade atendidos, qualquer ação é bem-vinda por parte destes espectadores. É difícil ser mais crítico sem nenhum parâmetro de comparação, é verdade.


Conclusão

O que eu tenho notado nas pesquisas de recepção é que é difícil contentar a todos os deficientes visuais ao mesmo tempo, por isso é importante que eles falem, dêem opinião sobre essa ou aquela audiodescrição, ao invés de elogiar apenas. Só assim será possível chegar a um maior consenso, embora nunca completamente satisfatório. E, desta forma, a pesquisa poderá avançar e fornecer dados precisos para que projetos sejam elaborados, como a formulação da norma de acessibilidade pela ABNT.

Pode parecer, mas não estou criticando a iniciativa da Vivo, mas o desprezo pelo trabalho acadêmico, representado aqui pelo trabalho dedicado da professora Lívia, a indiferença pela pesquisa. Espero que a Vivo continue investindo na audiodescrição cada vez mais. Espero que haja mais e mais voluntários na empresa interessados em audiodescrição. Aliás, parabéns aos voluntários da Vivo! Eles merecem! O que eu considero uma pena é o fato dos recursos disponíveis serem destinados apenas aos voluntários da empresa, sem qualquer vinculação com pesquisadores, as pessoas que produzem o conhecimento sobre audiodescrição, o profissional que forma o voluntário da empresa. Se a Vivo se dispõe a trabalhar com "honestidade, profissionalismo e transparência", nada mais justo do que dar visibilidade a quem a ajudou. A falta de reconhecimento público do trabalho da professora Lívia é uma prova da falta de interesse, e um imenso desestímulo àqueles que realmente se dedicam à causa. Desta forma, a responsabilidade social empresarial nunca trabalhará de mãos dadas com a educação. E dá a impressão de que tudo gira em torno de autopromoção. E o pesquisador permanece invisível.

1 "A Audiodescrição Amadora e Acadêmica em Confronto: Um Estudo de Caso", em fase de publicação; e "Em busca de um modelo de acessibilidade audiovisual para cegos no Brasil: Um projeto piloto", publicado em Tradterm, v.13, São Paulo: Humanitas (FFLCH/USP), 2007, p.171-185.

Eliana P. C. Franco.
Professora da UFBA, Pós-Doutora UAB
Capes.CoordCNPq. Audiodescrição e coordenadora Projeto TRAMAD/DLG-UFBa